Seminários Temáticos para o biênio 2015-2017

O comum e o cinema

Resumo

    A proposta retoma as principais questões que nortearam o seminário temático Cinema, estética e política de 2009 a 2013, voltando a pensá-las no contexto da produção mundial, em atenção aos filmes (sua estilística, seus modos de produção e circulação). Buscamos focalizar e desdobrar, em uma série de questões, a seguinte linha de indagação: como identificar, enfrentar e debater, no campo do cinema, a importante reivindicação de um espaço “comum” que se constitui por uma pluralidade de agentes, e cujas partes entrem em relação pela diferença e não por uma pretensa “identidade”? De que forças e recursos o cinema contemporâneo dispõe para dar forma a esse comum? Se “a coexistência supõe sempre a separação e a distância” (SILVA, 2011: 24), como o trabalho do cinema cria laços e partilhas, estabelece rupturas, fraturas, ausências? Como pensar novas figuras de comunidade, atentos à produção que se liga à vida de pequenos grupos em diferentes contextos?

Resumo expandido

    Se desejamos pensar, sob outro modo, os liames entre o cinema e o comum, a primeira coisa a fazer – seguindo a recomendação de Roberto Esposito – é tomar distância diante das filosofias comunitárias, desfazer a sinonímia entre o comum e o próprio, e conceber o ser-em-comum esvaziado de toda substância e de toda propriedade, tomando-o como radicalmente impróprio. O que caracteriza o comum é o outro: “um transbordamento, parcial ou integral, da propriedade em seu contrário. Uma desapropriação que investe e descentra o sujeito proprietário, e o força a sair de si mesmo. A alterar-se” (ESPOSITO, 2012:31). O ser-em-comum só pode ser indiciado pelas múltiplas classes de proximidades – umas expostas diante das outras – que o compõem, mas sem que ele venha a constituir um conjunto fechado (e, muito menos, um território, um corpo, uma corporação). Ele é feito não daquilo que cerca ou reúne, mas de tudo aquilo que dele se acerca e vem romper sua clausura: aquilo que constitui o comum não lhe pertence, afinal. (ESPOSITO, 2012:34).

    Interessa-nos, portanto, indagar pelas forças e recursos de que o cinema contemporâneo dispõe para dar forma a essas outras figuras do comum. Como a função mediadora das imagens do cinema poderia vir a constituir esse ser-com longe de toda fusão identificadora ou massificante, como reivindica Marie-José Mondzain? Ao retomar as indagações de Jean-Luc Godard em torno “do que pode o cinema”, a autora sublinha que o que define a imagem é sua capacidade de operar a ligação entre os sujeitos do olhar, mas mantendo as distinções, os desajustes e as dissensões. O cinema é então pensado como “o produtor da crença constitutiva sobre a qual repousa o mitdasein (o ser-com) do mundo partilhado socialmente, politicamente” (MONDZAIN, 2011: 125).

    Se o cinema pode criar uma comunidade de heterogêneos, interessa-nos indagar: de que modos a materialidade do filme condiciona e configura o “ser-em-comum”? E ainda, se essa comunidade é mesmo estética (RANCIÈRE, 2011), em que medida ela seria também política?

    Uma pista talvez seja pensar, junto com Jean-Louis Comolli (2008), nas experiências cinematográficas que subvertem a lógica do dispositivo descrita por Jean-Louis Baudry (que recalca o aparato para garantir o ilusionismo), nas quais a sala escura deixa de ser o lugar confortável do espetáculo e da catarse individual para se tornar um lugar da crise, da impossibilidade de realização da ilusão total, do trabalho pela falta. Dito isso, quais formas de escritura cinematográfica se abrem para essa dimensão faltosa, na qual o espectador sofre com o outro por estar na fronteira entre o cinema e o mundo, a cena e a vida?

    Concebemos ainda um segundo sentido para o comum: trata-se daquilo que é corriqueiro, cotidiano e que tem no cinema contemporâneo um locus potente de figuração. Ao colocar em cena a vida dos homens ordinários – experiências residuais dos banidos do capitalismo avançado de consumo – o cinema age sobre ela: seja enquadrando-a, tipificando-a, e assim escapando de toda singularidade que o comum guarda em sua potência; seja reinventando-a através da abertura para o acidental, e assim dando lugar a uma dimensão performativa; ou ainda legando ao sujeito filmado uma tomada de posição, criando, assim, um espaço relacional. Interessa-nos indagar sobre um comum que se constitui diante das forças biopolíticas e do espetáculo, e, que, portanto, só será reconhecido em sua dimensão ordinária quando exposto em suas fraturas.

Bibliografia

    AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Lisboa: Presença, 1993
    COMOLLI, Jean-Louis.“Os homens ordinários. A ficção documentária”. In: O comum e a experiência da linguagem. GUIMARÃES, C.; OTTE, G.; SEDLMAYER, S. (Orgs.). BH: UFMG, 2007.
    ESPOSITO, Roberto. Communitas. Origen y destino de la comunidad. Buenos Aires: Amorrortu, 2012.
    MONDZAIN, Marie-José. “A arte das imagens como poder de transformação”. In: SILVA, Rodrigo; NAZARÉ, Leonor (org). A república por vir. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.
    NANCY, Jean-Luc. La communauté désœuvré. Paris: Christian Bourgois éditeur, 2004,
    RANCIÈRE, Jacques. Aisthesis – scènes du regime esthetique de l’art. Paris: Galilée, 2011.
    __________. “Povo ou multidões?” In: Urdimento – Revista de Estudos em Artes Cênicas / UDESC. Vol. 1, n.15, Out. 2010.
    SILVA, RODRIGO. Apresentação (elegia do comum). In: SILVA, Rodrigo; NAZARÉ, Leonor (org). A república por vir. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011.

Coordenadores

    Cláudia Cardoso Mesquita
    Sylvia Beatriz Bezerra Furtado
    Amaranta Cesar