Trabalhos Aprovados 2016

Ficha do Proponente

Proponente

    Maria Ines Dieuzeide Santos Souza (UFMG)

Minicurrículo

    Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFMG, com bolsa da FAPEMIG. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Imagem e Som da UFSCar, e graduada em Comunicação Social pela UFES. Faz parte do grupo de pesquisa Poéticas da Experiência, da UFMG.

Ficha do Trabalho

Título

    Intervenção divina ou a reinvenção pelo cinema

Resumo

    Nossa proposta parte da análise do filme Intervenção divina (Elia Suleiman, 2002) para compreender as formas como o cotidiano palestino sob a ocupação israelense é colocado em cena. A partir da identificação de três características principais – o controle rigoroso da mise-en-scène, a estrutura de esquetes e a repetição dos eventos –, estabelecemos um diálogo do filme com o cinema burlesco para pensar como essa posta em cena passa pelo deslocamento e pela reinvenção possibilitadas pela ficção.

Resumo expandido

    Intervenção divina – uma crônica do amor e da dor (Yadon ilaheyya, França / Marrocos / Alemanha / Palestina, 2002), do diretor Elia Suleiman, é o filme do meio de uma trilogia que se volta para o cotidiano palestino sob a repressão do governo israelense. Assim como o primeiro (Crônica de um desaparecimento, 1996), este longa-metragem se estrutura em duas partes, a primeira centrada na cidade de Nazaré e a segunda em Jerusalém – com destaque para a barreira militar entre Ramalá e Jerusalém. Depois de um prólogo que se aproxima do nonsense – um grupo de jovens que persegue um Papai Noel esfaqueado no meio da paisagem pedregosa dos arredores da cidade –, a primeira parte se detém no cotidiano de um bairro árabe de Nazaré. As relações entre os vizinhos são tensas, presas em enquadramentos rígidos e situações que beiram o absurdo. Ainda que exponha uma vida absolutamente banal e repetitiva, esse cotidiano está marcado por uma violência latente, já anunciada na perseguição estranha do início.

    A segunda parte do filme tem início com a aparição do personagem encarnado pelo próprio diretor. A cena de entrada de Suleiman já dá o tom do desenrolar do longa: viajando de carro, Elia lança pela janela um caroço do damasco que está comendo; o caroço atinge um tanque de guerra parado ao lado da estrada, que explode com a colisão. Atravessando episódios que vão da banalidade total ao mais fantástico, este personagem se dividirá entre as idas ao hospital, onde visita o pai doente, e os encontros silenciosos com uma namorada misteriosa e poderosa, que se dão no pátio do posto de controle militar entre Ramalá e Jerusalém. Essa moça será a protagonista dos eventos de maior resistência aos militares israelenses: ela consegue, com passo firme e olhar desafiador, derrubar a torre do checkpoint com seu simples caminhar; no final do filme, se revelará guerreira ninja, com poderes super-heróicos, capaz de dar fim a um grupo de soldados em treinamento.

    Tal como os outros dois filmes da trilogia (composta ainda por O que resta do tempo – crônica de um presente ausente, 2009), o longa se caracteriza por uma estrutura fragmentada, na qual esquetes absurdas vão se repetindo em enquadramentos rígidos e encenações rigorosamente coreografadas. Em diálogo com outros diretores da tradição burlesca (podemos pensar especialmente em Jacques Tati), Suleiman cria para si um personagem que testemunha o cotidiano sob ocupação militar e reelabora o presente por meio de artifícios e engrenagens cinematográficos.

    Parece-nos que há, em Intervenção divina, uma tentativa de elaboração da vida em território de disputa (como é a vida dos que vivem no conflito entre Israel e Palestina) por meio do jogo ficcional de redisposição e refiguração de seus componentes, de seus espaços, de seus personagens. O diretor propõe novas configurações do cotidiano experienciado pelos moradores de Nazaré e Jerusalém, mediado pelo corpo burlesco que “[…] desfaz os encadeamentos da causa e do efeito, da ação e da reação, porque ele põe em contradição os próprios elementos da imagem móvel” (RANCIÈRE, 2013: 17). Suleiman parece afirmar que a posta em cena dessa vida passa pelo deslocamento, pela reinvenção possibilitada pela ficção – de si e do mundo. E o burlesco contribui para acentuar a redisposição dos elementos, com suas possíveis transgressões, com seus novos arranjos, novos espaços de disputa.

    Essa análise é parte de nossa pesquisa de doutorado, focada na trilogia palestina de Elia Suleiman, na qual buscamos compreender a articulação proposta pelos filmes entre encenação, ponto de vista e construção espaço-temporal, em sua relação com o contexto sócio-político contemporâneo sobre o qual se debruçam, e examinar como esta posta em cena pode estabelecer um diálogo formal com a particular condição de exílio na qual se encontra o cineasta, condição que se estende para o povo palestino.

Bibliografia

    AUMONT, J. O cinema e a encenação. Lisboa: Texto&Grafia, 2006.

    BERGSON, H. O riso. Ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

    DREUX, E. Le cinéma burlesque ou la subversion par le geste. Paris: L’Harmattan, 2007.

    GERTZ, N.; KHLEIFI, G. Palestinian Cinema: Landscape, trauma and memory. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2008.

    RANCIÈRE, J. A fábula cinematográfica. Campinas: Papirus, 2013.

    ______. As distâncias do cinema. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

    SAID, E. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

    TESSÉ, J.P. Le burlesque. Paris: SCÉRÉN-CNDP, Cahiers du cinéma, 2007.