Trabalhos Aprovados 2016

Ficha do Proponente

Proponente

    Alice Fátima Marins (UFG, CNPq, FAPEG)

Minicurrículo

    Professora e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual, e no curso de Licenciatura em Artes Visuais, da Faculdade de Artes Visuais (FAV/UFG). Editora da Revista Visualidades. Autora, entre outros, dos livros Saudades do futuro (Ed. UnB, 2013) e Catadores de sucata da indústria cultural (Ed. UFG, 2013). Desenvolve o projeto de pesquisa “Outros fazedores de cinema”, com financiamento da FAPEG e do CNPq, como Bolsista de Produtividade.

Ficha do Trabalho

Título

    Um anjo benjaminiano sobre bicicleta e cartografias afetivas

Mesa

    Cinema e subjetividade

Resumo

    Neste texto são propostas algumas reflexões sobre o trabalho do seu Ozorinho, que filma histórias, caminhos, paisagens, as gentes com quem convive. Filma as árvores que serão derrubadas pela agricultura intensiva, os animais ameaçados de extinção, as cachoeiras cujas águas estão poluídas. Seu Ozorinho usa uma câmera desgastada pelo tempo e pelo uso. O equipamento, obsoleto, poderia provocar risos entre vídeo makers afeitos às novidades tecnológicas. Mas, em suas mãos, configura ferramenta de primeira grandeza, indispensável ao projeto que lhe é mais caro. Ele pretende que, no futuro, os que haverão de vir possam ter uma ideia de como era tudo por ali. A potência de seu trabalho não está na qualidade técnica da produção, mas na intensidade da experiência que transpira nas imagens e sons organizados em narrativas fílmicas, montando um processo cartográfico de afetos.

Resumo expandido

    Dentre os sítios arqueológicos brasileiros, encontram-se os conjuntos de grutas localizados nos arredores de Serranópolis, no sudoeste goiano. As marcas desenhadas sobre rochas há alguns milhares de anos são mensageiras de notícias sobre habitantes que ocuparam aqueles territórios em tempos imemoriais. Os objetivos de sua produção, os sentidos engendrados são questões a respeito das quais apenas se produzem conjecturas. O mais surpreendente é que tenham atravessado ciclos temporais tão extensos, chegando até aqui. Contudo, as circunstâncias ambientas e comportamentais que enfrentam atualmente não parecem muito favoráveis à sua preservação. Testemunhas de um passado longínquo, deparam-se com ventos que sopram vigorosamente em direção ao futuro cujos projetos não se deixam seduzir ou comover por seus enigmas, e cuja pauta orienta-se pela noção de progresso instaurada na modernidade. Um tal progresso se constrói sobre as ruínas do passado, justificado pela promessa de conquista do futuro. Sobretudo, os ventos mensageiros do progresso anunciado por esse futuro não negociam facilmente com anjos benjaminianos que teimem em se voltar para recolher os mortos deixados para trás, ou para consertar o que foi destruído (BENJAMIN, 1987, p. 232). Em Serranópolis, entre as ruínas do passado e o futuro inevitável, dada a força da tempestade do progresso, transita um homem de pequena estatura, com mais de sete décadas vividas, portando uma câmera desgastada e um gravador no bolso, que inspirou o filme “Ozorinho, o poeta da imagem”, dirigido por Cássia Queiroz, em 2010. Vem de longe o projeto de seu Ozorinho para registrar seu meio, as pessoas de sua comunidade, as paisagens por onde percorre de bicicleta. Conhece sua região com intimidade, traçando cartografias afetivas (ROLNIK, 1989). Observa os ciclos de plantas e animais, as transformações dos horizontes, as sonoridades de cada lugar. E assim, vai constituindo um painel cada vez mais extenso de registros em audiovisual com esses elementos, dialogando com eles, recontando suas histórias. Registra também os eventos da cidade, festas, celebrações, histórias singulares, jogos de futebol… Desse modo, estabelece redes de conexões intracomunitária, numa cidade onde não há sala de cinema, e ainda bem poucos têm acesso à internet em suas residências. Em parceria com a secretaria de cultura do município, é dele também a iniciativa para a realização da Expedição Ozorinho, quando acompanha grupos de pessoas em excursões por cachoeiras da região, fazendas antigas, e grutas com desenhos rupestres. Todo o percurso é devidamente registrado por ele em vídeo, e nas pausas ainda é possível, eventualmente, ouvi-lo tocando sua antiga sanfona. Seu Ozorinho narra seu próprio tempo fazendo uso de ferramentas propiciadas pelo progresso, ao mesmo tempo em que articula recortes de memórias para recontar histórias e inventar outros futuros. Reclama quase nada para produzir suas narrativas: equipamentos obsoletos, gambiarras tecnológicas. A despeito de operar com o aparato digital, pouco domina os complexos processos que as imagens técnicas (FLUSSER, 2008) demandam. Operando com arquivos digitais, com sua pequena câmera, seu Ozorinho depende do funcionário de uma casa que presta serviços de informática para descarregar seus vídeos, e gravá-los em mídias portáteis. De tempos em tempos, seus vídeos são projetados no salão do Armazém Cultural, para onde acorre toda a comunidade, a compartilhar memórias e afetos. O equipamento com que trabalha, pela obsolescência, poderia provocar risos entre videomakers afeitos às novidades tecnológicas. Mas, em suas mãos, configura ferramenta de primeira grandeza. Seu Ozorinho se apropria dos recursos da imagem em movimento sonorizada, produzindo suas próprias narrativas (STAM, 2003) para contar aos que virão, no futuro, como eram as paisagens geográficas, humanas e afetivas, estas que ele traz, inscritas cartograficamente em sua própria experiência (DEWEY, 2010).

Bibliografia

    BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1987.
    DEWEY, John. Arte como experiência. Tradução de Vera Ribeiro, Martins Fontes, 2010.
    FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.
    OZORINHO, O Poeta da Imagem. Direção: Cássia Queiroz. Documentário. Vídeo. Arquivo digital. Colorido. Duração: 16 min. Brasil. 2010.
    ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1989.
    STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003.